sábado, 28 de maio de 2011

Em legítima defesa

Este texto foi escrito para participar de um concurso da Revista Piauí, da Ed. Abril. O desfio consiste em colocar a frase “_Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo!” num texto, de modo que ela faça sentido!

O caso me pareceu, logo de cara, dificultoso. Não diria perdido, pois não sou homem de entregar os pontos. Mas salvar meu tio das garras daquela aventureira não seria fácil, constatei.
Devo admitir que a fulana era dotada de enorme graça e sensualidade, principalmente pelos olhos oblíquos e dissimulados, como teria escrito alguém mais talentoso que eu.
O pobre tio estava perdido, embasbacado, alucinado por um belíssimo par de pernas e um rosto de menina inocente que o olhava e sorria, sorria, sorria.
Longe de mim admitir que meus interesses de sobrinho único e herdeiro certo de sua extensa fortuna pudessem interferir em meu julgamento absolutamente imparcial da Messalina. Moviam-me interesses humanitários e familiares, de proteção ao rico tio, senil e apaixonado.
Por isso, tive que usar armas fortes. Minhas pesquisas científicas confirmaram minhas desconfianças iniciais de que o cabedal cultural da criatura de generosas coxas não era lá essas coisas. Descobri também, valendo-me de todos os meios, que a dona dos olhos enganadores tinha aversão a todo tipo de doença. Fatos vindos como herança de infância pobre, que não lhe haviam tirado a beleza de seios, redondos e empinados, a apontar o caminho da perdição para tantos.
Uma tarde, a bela se encontrava sob um caramanchão especialmente feito para ela por meu tio, ligado a cenas e palavras românticas do século XIX. Foi difícil olhar para o rosto de anjo, imaginando-lhe os quadris arredondados sob a saia curta. Mas tomei coragem e chamei-a de nomes horríveis, fiz-lhe acusações, expus meus receios e minhas certezas sobre o caráter maligno de sua cara de santa.
A um tanto desses despautérios ela ouviu em silêncio, mas sua paciência era pequena,  de modo que revidou em alto e bom som, chamando-me de interesseiro, porra louca, sangue ruim. Esperei até o nível perfeito de sua raiva e então joguei-lhe na cara de pele doce e aveludada as palavras salvadoras:
_Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo!
Ao ouvir isso, a pequena entrou em pânico. Arrancou a roupa, desesperada, e ia sair assim despida pela rua, fugindo ao que imaginava ser terrível moléstia.
Tive que detê-la. Tive que abraçar seu corpo pequeno e bem feito para que não se desesperasse. Tive que beijar seus olhos oblíquos, a boca sedenta e os seios de mel. Derreti-me entre suas pernas altas, de coxas redondas e suaves ao toque. Ouvi sua voz de anjo, perdi-me para sempre no seu cheiro e no seu calor.
Meu tio ventríloquo nunca mais soube de nós. Arrumou outra namorada, desta vez uma rica senhora de numerosas prendas, dentre as quais a generosidade. Juntou sua fortuna à de meu tio e estão eles vivendo felizes enquanto Alzheimer não chega.
Nós também vivemos felizes, a santinha e eu. E não há dicionários em nossa casa.

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